Eu tinha acabado de me levantar, ainda eram três e quinze. Fazia frio e estava escuro, mas não me incomodava. Troquei de roupa, vesti uma blusa. Soquei na bolsa o dinheiro da condução mais umas maçãs, um livro lido pela metade e meus óculos escuros. Ainda não havia tráfego. Tranquei a porta e desci as escadas ainda meio zonza e pensando que nunca conseguiria chegar à rodoviária a pé. Na cabeça, uma música de Djavan, mas bem que eu queria estar pensando em Garage Fuzz. O semáforo fecha, o único carro na pista não para. Tudo em silêncio. E eu numa vontade louca de gritar: “- É hoje, é hoje!” a plenos pulmões. Então soltei meus cabelos ao vento, arrancando a fita que os prendia e a amarrando em meu pulso, e meus pés tomaram para si a inspiração de uma bailarina e as folhas voavam com os fantasmas que passavam e os postes garantiam as sombras que dançavam, e como um pião fui rodando, e os passarinhos que acabavam de acordar me olhavam, e o motorista do ônibus arregalava os olhos, e detrás de uma janela, um cachorro queria me olhar, mas não me via. Suspendi a respiração. Novamente, ninguém ao redor. Então amarrei meu cabelo, disciplinadamente, descalcei meus sapatos e, na ponta dos pés, beijei a estátua, que corou. Coloquei o capuz, mordi uma maçã, e era novamente personagem de conto de fadas. Atravessei a ponte. O rio corria de noite também. E enquanto levava consigo sujeira, lágrimas e saudade, sussurrava baixinho que não iria parar… ah, sempre em frente. E ergui a cabeça novamente e acenei para um sol, tímido, que acabava de nascer. Sorri. Pensei em cheirar as flores, mas não as alcançava, e me sentindo ínfima, quis chorar. Mas segui as borboletas que me levaram ao altar. Peguei meu livro, sentei na parada. Pessoas começavam a acordar. É hoje.