Inspirada em “Os Bruzundangas”, obra póstuma de Lima Barreto. Este conto possui conteúdo fictício, qualquer semelhança com a realidade não passa de coincidência.

Recebi sua correspondência, caro amigo, e agradeço os votos de saúde, paz e prosperidade. Fico feliz que você e sua senhora tenham chegado bem, só lamentando o fato de não terem tempo para uma visita. Aqui o rio continua caindo caudaloso e as árvores crescem verdes e vistosas. Nossas crianças “amadurecem” cada vez mais cedo e nossos idosos vivem bem e com saúde, obrigada. Não muito diferente de sua terra natal, a próspera Bruzundanga. Tão próspera quanto a recente carta pôde me relatar. Fiquei verdadeiramente comovida com as descrições que fez, e o interesse demonstrado em conhecer um pouco mais sobre minha própria terra. Se tivesse vindo me visitar, veria por si mesmo, mas como não é o caso, espero relatar-lhe com o máximo de fidelidade as características do lugar onde nasci.

Aqui as coisas se parecem em muito com Bruzundanga. As pessoas vivem pacatamente, a violência é baixa, todos tentam pagar as contas em dia. Bem, mas há pequenas diferenças, afinal. A ditadura por aqui não é tão escancarada como aí. Não se assuste se falo logo assim, no começo, mas é algo que tenho de dizer: vivemos sob uma ditadura.

Você deve logo imaginar canhões, soldados marchando às ruas, proibições pregadas às paredes e coisas do tipo. Não se engane, aqui é diferente. A ditadura por essas terras é mais sutil – o que a torna ainda mais perigosa. Eu costumo dizer que vivemos sobre uma “ditadura de liberdade. Na verdade, de falsa liberdade que é vendida pelo governo à massa sedenta que aqui habitam. Deixe-me explicar melhor: aqui o prefeito governa na base dos favores. Sim, favores. Ele cumpre a obrigação que lhe cabe, como alguém ELEITO PELO POVO, e ainda sai dizendo, e há muitos que acreditam, que ele fez um favor. Não sei se o amigo se lembra dos gregos, os gregos que idealizaram a res publica, recorda-se? Res Publica, coisa do povo, mas que aqui na verdade não passa de “coisa do povo que apóia o prefeito.

Acredita, caro amigo, que a população, o mesmo povo que elegeu este arrogante governante, abaixa a cabeça diante de todos os seus mandos e desmandos? Porque aqui, saiba, ninguém tem o direito de criticar aquele a quem elegeu. O povo acha que o prefeito está acima deles! Tolos, todos tolos. Recorda-se de Luís XVI, destronado pelas massas durante a Revolução Francesa? Agora lhe pergunto: quem é este bobo da corte que aqui governa senão um cão diante de Luís XVI? No entanto, em pleno século XXI, com tantos tratados sobre os direitos dos cidadãos, as pessoas o temem e o obedecem como os criados da França sob os Bourbon. Mas o monarca daquele século foi guilhotinado. Me pergunto o que o povo daqui seria capaz de fazer, se decidisse abrir os olhos.

Claro, não me deixe esquecer das perseguições, a marca registrada deste governante. Eu já disse que ninguém pode criticá-lo, mas ainda assim alguns tentam. E sabe o que acontece com estes corajosos cidadãos? PERSEGUIDOS. Perseguidos pelo poder público que, como reza a constituição deste país, DEVE SER IGUAL PARA TODOS, PERANTE A LEI. Mas aqui isso não procede. Aqui não há a liberdade de expressão, assegurada no Artigo 5°, Inciso 9°, desta mesma Constituição. Nesta terra só é livre pra falar aquele que fala bem do governo. Não se espante, caro amigo, caso, após o envio desta carta, ocorra algum tipo de represália ou perseguição para comigo. Se não comigo, para meus pais, ou tios, ou amigos, ou qualquer parente que resida neste município e seja funcionário público. Se acontecer, já está avisado e sabe do que se trata, não é necessário assustar-se. A ditadura velada instaurada sob estas terras não permite que falemos. Ah, também é mal visto qualquer tipo de associação sindical, também assegurada por lei, dentro das terras de onde vim. As pessoas chegam mesmo a dizer que “o prefeito aumentou o salário de seus funcionários, e eles agradecem criando sindicatos”. Agora, amigo, não sei se me apiedo ou me irrito diante desta manifestação tão explícita de IGNORÂNCIA. É o povo contra si mesmo, não percebe?

O povo que se acha em dívida com um governo que É OBRIGADO A LHE REPRESENTAR, a seguir o que rege a constituição como direito inviolável do cidadão, um governo que, ao aumentar o salário, nada mais faz que CUMPRIR O SEU DEVER. Mas aqui não, porque, como já comentei, tudo que o prefeito faz é encarado como favor.

O povo devia fazer um favor a si mesmo e DESTRONAR esses que se acham reis. Quem foi mesmo que disse: “O povo não deve temer o seu governo, o governo é que deve temer seu povo? É claro, isso não funciona por estas terras. As pessoas fecham os olhos e concordam, cientes da própria subserviência diante das arbitrariedades ridículas de um governante que só demonstra sua própria MEDIOCRIDADE com todos os desmandos que comete.

Seu vice não fica para trás. No pedaço de chão onde vive, acha-se dono de tudo, senhor dos destinos e das vidas que ali habitam. Uma versão moderna de Luís XIV, avô do rei guilhotinado que já citei acima, e que bradava em alto e bom som: O ESTADO SOU EU. Aqui, indiretamente, tanto prefeito quanto seu vice seguem piamente este ditado. O Estado, se não eles, é DELES.

A corja que apóia estes fanfarrões é tão digna deles quanto você pode imaginar. São cidadãos de bem que, no governo passado, gritavam contra as truculências do prefeito-coronel que aqui havia, mas, atualmente, REPETEM AS MESMAS FAÇANHAS DAQUELE. Se não são acusados pela própria consciência, se não percebem a HIPOCRISIA que cometem, quem mais os acusaria? Não o rebanho pastoril que compõe a população local. O povo, como gado de corte, é guiado pelo matadouro da prefeitura, e sob o controle inviolável do açougueiro – o prefeito – assinam sua própria sentença de morte. Marcham sem identidade para um futuro que desconhecem, vivendo a falsa idéia de liberdade e que se pode falar tudo que quer. Não pode. Na ditadura de idéias, meu amigo, o controle ainda é mais eficaz. Pergunto-me o que vão fazer comigo? Transferir-me para alguma comunidade das redondezas, se esta carta vier a público? Ordenar que me executem? Processar-me perante a lei?

Sim, porque, quase me esquecia, a lei também está sob o comando do prefeito. Juízes, advogados, promotores comprados para que a farsa do governo esteja completa. É tudo muito eficaz, se você percebe, porque, se a população tenta exigir seus direitos perante a lei, quem as atenderá? Um juiz e um promotor vendidos, certamente. E, claro, a justiça, cega, surda e muda diante dos apelos dos poucos que têm coragem de falar. Já acusaram esta Dama Justiça de sair com homens de uniforme (durante o período militar, quem não se lembra?), mas agora ela dança com fazendeiros e donos de hilux.

Já chego ao fim desta carta, meu amigo, pois o espaço é curto e não cabe tudo que eu tinha a dizer. Espero que tenha entendido a mensagem que lhe envio, que no fundo da alma ela tenha lhe penetrado e você compreenda plenamente. Talvez as coisas em Bruzundanga estejam piores que aqui, ou melhores, não sei, mas a terra onde nasci clama, chora copiosamente por dignidade, respeito e igualdade para aqueles que nela vivem. Provavelmente, enquanto o povo aceitar este prefeito, nada vai mudar. Continuarão esquecidos de expressões como “greve geral”, legitimada por lei, e esquecidas de denunciar no Ministério Público, de associar-se em conjunto e invadirem a prefeitura – um local público – exigindo que se cumpram seus direitos, mas se pelo menos você, meu amigo, se pelo menos você compreender o que digo e conhecer a situação vergonhosa em que vivemos, se pelo menos em você uma chama de revolta e desejo de mudança brotar, então me considero satisfeita e dormirei tranquila e feliz. Desde já minhas recomendações de felicidade a você e à sua senhora. Passe bem, e obrigada pelos doces.